domingo, 5 de outubro de 2008

“A Militarização da Violência e a Glamorização (in)consciente dos arts. 286 e 287 do Código Penal”

"Aviso aos delinqüentes que se iniciam na profissão: não se recomenda assassinar com timidez. O crime compensa, mas só compensa quando praticado em grande escala, como nos negócios. Não estão presos por homicídio os altos chefes militares que deram a ordem de matar tanta gente na América Latina, embora suas folhas de serviço deixem rubro de vergonha qualquer bandido e vesgo de assombro qualquer criminologista" (GALEANO, 2007, p. 207)

Durante muito tempo o filme “Tropa de Elite” foi o centro de muitos debates, até mesmo debates de botecos aos sábados. O filme foi calorosamente aplaudido e elogiado pela crítica brasileira (em especial a revista VEJA) e o capitão Nascimento foi então eleito como o grande herói do Brasil pela sua coragem e “braveza” na guerra contra o tráfico no Rio de Janeiro. Lembro-me muito bem que no auge do filme a Veja publicou uma matéria que rendeu a capa da revista e que tinha na manchete alo do tipo: “O filme tropa de elite é muito bom, pois mostra que policial é policial e que traficante é traficante”. Nossa, que conclusão hein? Alguém mais conseguiu chegar à outra conclusão diferente dessa? ¬¬
Pois bem, fato é que mesmo com toda a violência Implícita demonstrada no filme, este, ainda assim, foi o grande sucesso nacional da época. Não ter assistido ao filme era o mesmo que não ter RG. Afinal de contas, ninguém poderia perder tal espetáculo, não é mesmo? A pergunta é: os fins justificam os meios? Para o BOPE com certeza que sim.
Para quem, por algum motivo, não se rendeu às críticas rendidas ao filme e deixou de vê-lo, Tropa de Elite, de fato, mostra que policial é policial e que traficante é traficante. Ou seja, que policial (em especial o Militar) é corrupto e violento, bem como traficante só existe porque tem quem o financie, e que apesar de fazer esse “mal” à sociedade, nada se compara ao mal que a sociedade o faz quando o permite viver em barracos desabando uns por cima dos outros por falta de oportunidade para subir na vida e ter sua casa própria, livre das desigualdades sócio-raciais tão comuns no Brasil. Para o BOPE traficante é o monstro que aterroriza a metrópole e acaba com a paz de seus “cidadãos” que se acham em dia com o mundo porque votam de dois em dois anos. Para o BOPE tanto faz se o traficante é pai de família que vende droga porque o tráfico foi o único que lhe abriu as portas para uma vida menos indigna do que a sociedade lá fora, em seus bairros nobres, lhe poderia alguma vez permitir. Tanto faz para o BOPE se é o tráfico a única fonte de subsídio para milhares de famílias do RJ e do resto do mundo; se é ela que traz água potável e energia para as favelas e que traz solidariedade para seus moradores. O grande lance é subir o morro no camburão da caveira, aterrorizando tudo e a todos com suas frases de medo e seus tiros de fuzil, cuja as balas custam mais caro que cestas básicas para as famílias que nada tem a ver com a história, a não ser o fato de nascer tão azarados quanto aqueles que optaram pela vida do tráfico.
Toda essa violência mostrada no filme foi motivo de grandes aplausos e críticas afirmativas à grande atuação do capitão Nascimento nesse embate civil. Controversamente há alguns meses atrás foi manchete do Jornal Nacional a reportagem de alguns policiais MILITARES que pegaram o corpo de uns garotos de uma favela e deram para traficantes da favela rival os exterminarem da maneira mais horrenda possível. Poderia alguém me explicar de onde veio tanto espanto de uma hora pra outra? Ou vocês vão me dizer que não sabiam que é isso que a polícia costuma fazer quando não quer sujar as suas mãos com sangue de crianças alvos do tráfico? Não? Mas como? Será que o Tropa de Elite que as pessoas tanto elogiaram no cinema não os mostrou a parte em que o coronel de um batalhão da PM manda retirar corpos de um local para transferir para outro e virar ESTATÍSTICAS? Que pena hein?!?
Confesso que fiquei surpresa com tanto espanto, afinal de contas, isso seria uma grande controvérsia. Além do mais, o que mais me espantou de fato foi esse espanto todo por causa de uma denúncia como essas a nível de Jornal Nacional quando na verdade, o jornalista Caco Barcellos (aquele que apresenta o “Profissão Repóter todas as terças depois de “Toma Lá, dá Cá”) fez essa denúncia há mais de dez anos atrás – de forma maravilhosamente bem estruturada e fundamentada, diga-se de passagem -, ao lançar o livro “ROTA 66 – A história da polícia que mata)[1]. Ah ta! Me desculpem, lembrei que livros desta estirpe não viram roteiro de filme nacional. Afinal de contas mostrar o outro lado da história poderia ser um grande risco: ou não renderia tanto lucro, ou renderia até mais e a polícia acabaria perdendo o seu título de heroína e de super-protetora da sociedade. Mas e quanto ao livro? Será que ninguém nunca leu? Bem, considerando que grande parte da população nacional é analfabeta e que livros custam os olhos da cara, não é de se estranhar que as pessoas nunca tenham ouvido falar nele, o que é uma pena.
Mas quantas pessoas leram ao livro Elite da Tropa (que rendeu ao José Padilha o roteiro do filme Tropa de Elite)? Talvez nem tantas assim, mas com certeza se ouviu falar dele, pelo menos depois do filme. Para quem não leu o livro, mas assistiu ao filme, aí vai um conselho: se você odiou o filme porque, assim como eu, acha que tudo aquilo não passou de um show midiático que a polícia utilizou para alienar as pessoas e tentar legitimar suas ações corruptas, violentas e desnecessárias, o livro é bem pior. Multiplica-se os palavrões e a apologia ao crime; “era hora de colocar em prática o que aprendemos no curso de operações especiais: ‘o máximo de violência, morte e confusão, na retaguarda profunda do inimigo’” (BATISTA; PIMENTEL; SOARES, 2006, p. 54). Mas se você adorou ao filme e acha que a ação do BOPE é a correta; bem (meus pêsames), faça deste livro a sua Bíblia.
Agora, falando em apologia ao crime, uma coisa bem engraçada me ocorreu na cabeça nesse semestre. Como já disse em meu perfil, sou estudante de Direito e atualmente estou cursando o 5° período do mesmo. Pois bem, ao tempo do filme e quando tive acesso às leituras que aqui citei, eu não tinha conhecimento que o nosso Código Penal contêm dois artigos que criminalizam tanto a apologia ao crime e ao criminoso como a incitação ao crime. Vou transcrevê-los aqui:
*Art. 286. Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
*Art. 287. Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime:
Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
Explicando: é crime um traficante (preto, pobre e semi-analfabeto) afirmar que o mundo do tráfico é o certo, pois é o que lhe permite ter uma vida menos indigna. É crime elogiar a solidariedade das facções criminosas, assim como é crime idolatrar o Marcinho VP pelas benfeitorias que ele, juntamente com seus irmãos do crime, ajudaram a construir no Morro Dona Marta (BARCELLOS, 2007); mas não é crime publicar um livro ou produzir um filme como o Elite da Tropa e o Tropa de Elite que fazem apologia e incitação ao crime EXPLICITAMENTE, assim como também não é crime um delegado (deduz-se que instruído pois que tem que ser graduado em Direito) dizer publicamente que “bandido bom é bandido morto e enterrado em pé para não ocupar espaço”. Mas afinal, a lei não é igual para todos? Bem, como diria Geoge Orwell, “alguns são mais iguais que os outros”.
"Somos todos iguais perante a lei. Perante que lei? Perante a lei divina? Perante a lei terrena, a igualdade se desiguala o tempo todo e em todas as partes, porque o poder tem o costume de sentar-se num dos pratos da balança". (GALLEANO, 2007, p. 207).


Alanna Sousa


FONTES:

*BARCELLOS, Caco. Abusado. O dono do Morro Dona da Marta. Ed.18. Rio de Janeiro: 2007.
*______________. ROTA66. A história da polícia que mata. Ed.8. Rio de Janeiro: 2006.
*BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo; SOARES, Luiz Eduardo. Elite da Tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
*GALEANO, Eduardo. De Pernas Pro Ar. A escola do mundo ao avesso. 9 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.
*ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[1][1][1] Para quem não sabe, o ROTA 66 é o equivalente ao BOPE, só que no estado de São Paulo e deveras mais violento e injusto.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

“O Sistema Penal, a Laranja Mecânica e a Perda da Identidade”



“Há cento e trinta anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice entrou num espelho para descobri o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela” (GALEANO, 2007, p.2).
Mais uma vez eu fiquei um tempão sem postar por aqui. Dessa vez nem tanto pela falta de inspiração quanto pela falta de tempo mesmo. O semestre começou com tudo e eu, com a minha mania de querer “abarcar o mundo com as pernas” (que apesar de grossas, não são grandes o suficiente), estou me envolvendo com outras coisas e por conseguinte, estou mais sem tempo do que nunca. Enfim, cá estou eu novamente.
Pegando o ensejo do último post e, aproveitando a inspiração que me foi deixada pelos livros que tenho lido, hoje vou tentar fazer uma relação, com toda a devida vennia entre o Sistema Penal atual, o livro Laranja Mecânica e um documentário policial caseiro que tive acesso na semana passada (salvo engano, o nome é “dia-a-dia de um policial”, como eu o emprestei, não posso confirmar agora, mas dou a informação certa no próximo post).
Bem, pra quem não sabe, o livro “Laranja Mecânica” do autor Anthony Burgess é uma história de ficção que retrata como será o problema da violência no futuro. O livro foi escrito há cerca de 40 anos atrás com a idéia de retratar como será o mundo em um futuro bem distante, onde a tecnologia já é ultra avançada e junto com ela, a violência urbana. O que posso dizer é que, apesar da nossa tecnologia não estar, ainda, tão avançada quanto é descrita no livro, a violência com certeza já evoluiu bastante de lá pra cá. A diferença entre Alex e seus “druguis” pros marginalizados de hoje, é que, sem sombra de dúvidas, os “delinquentes” de hoje não têm o costume de ouvir Beethoven, não são de classe média e muito menos vestem as roupas da moda. Um dia chegarão nosso “delinqüentes” a esse nível de cultura e modernização? Creio que não. Mas caso alguns deles tenham a sorte de chegar, com certeza já não mais serão estereotipados como tais. “Os presos são pobres, como é natural, porque só os pobres vão para a cadeia em países onde ninguém é preso quando vem abaixo uma ponte recém inaugurada, quando leva à bancarrota um banco depenado ou quando desmorona um edifício sem alicerces” (GALEANO, 2007, p. 95).
Fato é que, apesar das diferenças de classe, sociais, culturais e econômicas (diferenças essências para o seu etiquetamento como marginal) entre os atores do livro de ficção e os atores do livro da vida real, todo o resto lhes é comum. O prazer pela violência, a ânsia pela dor alheia e a revolta por se viver em um mundo que de certa forma não lhe pertence, ou que não se encaixa em seu perfil. Nos dias de hoje ultrapassamos a barreira da criminalidade e já alcançamos o topo da violência. Quando falo de violência, refiro-me não somente à física, mas também e, principalmente, a psíquica. Os ditos “marginais” de hoje já não se contentam em furtar, precisam se utilizar da violência e do medo, pra ganhar o seu espaço. A mídia, por sua vez, precisa mostrar nos mostrar esse medo para que possa nos alienar a ponto de nos fazer acreditar que o problema destes “marginais” é um problema patológico – como ensinou Lombroso há mais de cem anos atrás – e que a sua única solução é “isolá-los” de nós, seres humanos “normais” e não cometedores de crimes, espremendo-os entre tantos outros iguais e fazendo da prisão uma verdadeira escola do crime.
O sistema penal de hoje pouco se diferencia da técnica Ludovica de “ressocialização”[1] a qual participou Alex quando do seu “tratamento” na prisão de “Laranja Mecânica”. Atualmente - eu volto a dizer - a única diferença entre os marginais do livro e os marginais da atualidade é a falta de tecnologia que nós ainda não alcançamos. No livro o autor retrata toda uma cabine equipada de parafernalhas utilizadas para converter o cérebro humano em um cérebro animal (irracional). No sistema penal a falta de parafernalhas não transforma somente o cérebro humano em animal, mas sim todo o seu ser. O direito penal insiste na idéia de que presídios são as soluções para a redução da criminalidade, impondo aos seus hóspedes, um método de “ressocializaçao” (que como bem prevê a Lei de Execução Penal é um direito do preso e não um DEVER, como o Estado faz parecer ser) que nada tem a ver com reeducação ou qualquer outra palavra que possa vir a ser sinônimo desta. É incrível como todo esse mecanismo (tanto do livro quanto da vida real) é projetado pra fazer com que essas pessoas percam a sua identidade. A maldade ou bondade da pessoa deixa de ser uma escolha (a)moral pra ser ou um dever (na ficção) ou uma falta de opção (na realidade). “A questão é se uma técnica dessas pode realmente tornar um homem bom. A bondade vem de dentro. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem” (BURGESS, 2004, p. 85).
Na sociedade em que se vive o homem delinqüente deixa de ser homem pois, o estigma que carrega desde o seu nascedouro - muita das vezes por ser preto e pobre -, não lhe deixa muita opção entre ser bom ou mau. O sistema punitivo quando o captura, retira-lhe o pouco de identidade que lhe foi conquistada seja por uma vida honesta, seja por uma vida marginal. Não bastasse o mundo aqui fora insistir em lhe dizer que ele deve ser assim ou assado, mesmo não lhe dando nenhuma oportunidade pra isso, dentro das “prisões da miséria” o preso é obrigado a melhorar para voltar à uma sociedade que desde sempre o discriminou e lhe fez mal.
Sempre se debate nos colóquios de Direito Penal em como fazer, quais atitudes tomar para fazer do presídio um ambiente propício à “ressocializaçao” deste ser, de maneira que ele possa voltar a integrar a mesma sociedade que lhe pôs lá dentro. O que não se questiona é se esse preso quer de fato voltar para onde todos sempre lhe olharam torto, sempre lhe negaram emprego e caçoaram de sua falta de instrução; ainda mais agora que está tatuado eternamente - física e psicologicamente - pelas marcas da prisão. Ao chegar na penitenciária o preso perde o nome e passa a ser identificado por um número. Ali ele perde todos os direitos que sempre teve no papel mas que nunca se transpôs à sua realidade, quais sejam a moradia, a educação, a alimentação, ao tratamento igual. Ali ele perde também a sua dignidade e a sua identidade como um ser racional, pouco se diferenciando de um cachorro sarnento dos becos de ruas escuras. Quando do seu flagrante, mesmo sendo menor de idade, a mídia insiste em estampar seu rosto em todos as páginas e telas de jornais, o força a falar até mesmo coisas que nem mesmo sabe o significado e o transforma, devido ao furto cometido pelo mal da fome, em um monstro, um verme, e que deve ser punido e "ratado da mesma forma que aquele que estuprou com prazer uma criança de 5 anos de idade. Mas essa mesma mídia, por meio de filmes, jornais e documentários, é incapaz de compará-lo com aquele criminoso que fez dele esse monstro tão temível; aquele que desvia o dinheiro dos cofres públicos destinados à educação ou saúde e todos os outros direitos fundamentais previstos no art. 5° da Constituição Federal. Ao sair da prisão, recupera seu nome, mas não mais a identidade. Já não é mais o João, o Marcelo ou o Fernando, mas sim o “ex-presidiário” que matou, roubou ou se drogou; mesmo que por auto-defesa, necessidade ou pra enganar a fome. A partir dali a sua cruz fica mais pesada que a dos demais que deixou aqui, no lado de fora. Agora mesmo é que as oportunidades que nunca lhe foram oferecidas, desaparecerão. No fim das contas: “condena-se o criminoso, não a máquina que o fabrica, como se condena o viciado e não o modo de vida que cria a necessidade do consolo químico ou sua ilusão de fuga... A lei é como uma teia de aranha, feita para aprisionar moscas e outros insetos pequeninos e não os bichos grandes, como concluiu Daniel Drew. E já faz um século que José Hernández, o poeta, comparou a lei com uma faca, que jamais fere quem a maneja. Os discursos oficiais, no entanto, invocam a lei como se ela valesse para todos e não só para os infelizes que não podem evitá-la. Os delinqüentes pobres são os vilões do filme: os delinqüentes ricos escrevem o roteiro e dirigem os atores” (GALEANO, 2007, p. 96).

Alanna Sousa
Fontes:
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. São Paulo: Aleph, 2004.
GALEANO, Eduardo. De Pernas Pro Ar. A escola do mundo ao avesso. 9 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.
WACQUANT, Loiic. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
Documentário (como não tenho as informações aqui, coloco no próximo post).

[1] Essa palavra é tão absurda do ponto de vista sociológico, que nem mesmo o próprio dicionário que vem acoplado ao Word a reconhece. Motivo pelo qual vem acompanhada das aspas. Sobre o meu repúdio a esta palavra, ler post do dia 31 de março.