sexta-feira, 3 de outubro de 2008

“O Sistema Penal, a Laranja Mecânica e a Perda da Identidade”



“Há cento e trinta anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice entrou num espelho para descobri o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela” (GALEANO, 2007, p.2).
Mais uma vez eu fiquei um tempão sem postar por aqui. Dessa vez nem tanto pela falta de inspiração quanto pela falta de tempo mesmo. O semestre começou com tudo e eu, com a minha mania de querer “abarcar o mundo com as pernas” (que apesar de grossas, não são grandes o suficiente), estou me envolvendo com outras coisas e por conseguinte, estou mais sem tempo do que nunca. Enfim, cá estou eu novamente.
Pegando o ensejo do último post e, aproveitando a inspiração que me foi deixada pelos livros que tenho lido, hoje vou tentar fazer uma relação, com toda a devida vennia entre o Sistema Penal atual, o livro Laranja Mecânica e um documentário policial caseiro que tive acesso na semana passada (salvo engano, o nome é “dia-a-dia de um policial”, como eu o emprestei, não posso confirmar agora, mas dou a informação certa no próximo post).
Bem, pra quem não sabe, o livro “Laranja Mecânica” do autor Anthony Burgess é uma história de ficção que retrata como será o problema da violência no futuro. O livro foi escrito há cerca de 40 anos atrás com a idéia de retratar como será o mundo em um futuro bem distante, onde a tecnologia já é ultra avançada e junto com ela, a violência urbana. O que posso dizer é que, apesar da nossa tecnologia não estar, ainda, tão avançada quanto é descrita no livro, a violência com certeza já evoluiu bastante de lá pra cá. A diferença entre Alex e seus “druguis” pros marginalizados de hoje, é que, sem sombra de dúvidas, os “delinquentes” de hoje não têm o costume de ouvir Beethoven, não são de classe média e muito menos vestem as roupas da moda. Um dia chegarão nosso “delinqüentes” a esse nível de cultura e modernização? Creio que não. Mas caso alguns deles tenham a sorte de chegar, com certeza já não mais serão estereotipados como tais. “Os presos são pobres, como é natural, porque só os pobres vão para a cadeia em países onde ninguém é preso quando vem abaixo uma ponte recém inaugurada, quando leva à bancarrota um banco depenado ou quando desmorona um edifício sem alicerces” (GALEANO, 2007, p. 95).
Fato é que, apesar das diferenças de classe, sociais, culturais e econômicas (diferenças essências para o seu etiquetamento como marginal) entre os atores do livro de ficção e os atores do livro da vida real, todo o resto lhes é comum. O prazer pela violência, a ânsia pela dor alheia e a revolta por se viver em um mundo que de certa forma não lhe pertence, ou que não se encaixa em seu perfil. Nos dias de hoje ultrapassamos a barreira da criminalidade e já alcançamos o topo da violência. Quando falo de violência, refiro-me não somente à física, mas também e, principalmente, a psíquica. Os ditos “marginais” de hoje já não se contentam em furtar, precisam se utilizar da violência e do medo, pra ganhar o seu espaço. A mídia, por sua vez, precisa mostrar nos mostrar esse medo para que possa nos alienar a ponto de nos fazer acreditar que o problema destes “marginais” é um problema patológico – como ensinou Lombroso há mais de cem anos atrás – e que a sua única solução é “isolá-los” de nós, seres humanos “normais” e não cometedores de crimes, espremendo-os entre tantos outros iguais e fazendo da prisão uma verdadeira escola do crime.
O sistema penal de hoje pouco se diferencia da técnica Ludovica de “ressocialização”[1] a qual participou Alex quando do seu “tratamento” na prisão de “Laranja Mecânica”. Atualmente - eu volto a dizer - a única diferença entre os marginais do livro e os marginais da atualidade é a falta de tecnologia que nós ainda não alcançamos. No livro o autor retrata toda uma cabine equipada de parafernalhas utilizadas para converter o cérebro humano em um cérebro animal (irracional). No sistema penal a falta de parafernalhas não transforma somente o cérebro humano em animal, mas sim todo o seu ser. O direito penal insiste na idéia de que presídios são as soluções para a redução da criminalidade, impondo aos seus hóspedes, um método de “ressocializaçao” (que como bem prevê a Lei de Execução Penal é um direito do preso e não um DEVER, como o Estado faz parecer ser) que nada tem a ver com reeducação ou qualquer outra palavra que possa vir a ser sinônimo desta. É incrível como todo esse mecanismo (tanto do livro quanto da vida real) é projetado pra fazer com que essas pessoas percam a sua identidade. A maldade ou bondade da pessoa deixa de ser uma escolha (a)moral pra ser ou um dever (na ficção) ou uma falta de opção (na realidade). “A questão é se uma técnica dessas pode realmente tornar um homem bom. A bondade vem de dentro. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem” (BURGESS, 2004, p. 85).
Na sociedade em que se vive o homem delinqüente deixa de ser homem pois, o estigma que carrega desde o seu nascedouro - muita das vezes por ser preto e pobre -, não lhe deixa muita opção entre ser bom ou mau. O sistema punitivo quando o captura, retira-lhe o pouco de identidade que lhe foi conquistada seja por uma vida honesta, seja por uma vida marginal. Não bastasse o mundo aqui fora insistir em lhe dizer que ele deve ser assim ou assado, mesmo não lhe dando nenhuma oportunidade pra isso, dentro das “prisões da miséria” o preso é obrigado a melhorar para voltar à uma sociedade que desde sempre o discriminou e lhe fez mal.
Sempre se debate nos colóquios de Direito Penal em como fazer, quais atitudes tomar para fazer do presídio um ambiente propício à “ressocializaçao” deste ser, de maneira que ele possa voltar a integrar a mesma sociedade que lhe pôs lá dentro. O que não se questiona é se esse preso quer de fato voltar para onde todos sempre lhe olharam torto, sempre lhe negaram emprego e caçoaram de sua falta de instrução; ainda mais agora que está tatuado eternamente - física e psicologicamente - pelas marcas da prisão. Ao chegar na penitenciária o preso perde o nome e passa a ser identificado por um número. Ali ele perde todos os direitos que sempre teve no papel mas que nunca se transpôs à sua realidade, quais sejam a moradia, a educação, a alimentação, ao tratamento igual. Ali ele perde também a sua dignidade e a sua identidade como um ser racional, pouco se diferenciando de um cachorro sarnento dos becos de ruas escuras. Quando do seu flagrante, mesmo sendo menor de idade, a mídia insiste em estampar seu rosto em todos as páginas e telas de jornais, o força a falar até mesmo coisas que nem mesmo sabe o significado e o transforma, devido ao furto cometido pelo mal da fome, em um monstro, um verme, e que deve ser punido e "ratado da mesma forma que aquele que estuprou com prazer uma criança de 5 anos de idade. Mas essa mesma mídia, por meio de filmes, jornais e documentários, é incapaz de compará-lo com aquele criminoso que fez dele esse monstro tão temível; aquele que desvia o dinheiro dos cofres públicos destinados à educação ou saúde e todos os outros direitos fundamentais previstos no art. 5° da Constituição Federal. Ao sair da prisão, recupera seu nome, mas não mais a identidade. Já não é mais o João, o Marcelo ou o Fernando, mas sim o “ex-presidiário” que matou, roubou ou se drogou; mesmo que por auto-defesa, necessidade ou pra enganar a fome. A partir dali a sua cruz fica mais pesada que a dos demais que deixou aqui, no lado de fora. Agora mesmo é que as oportunidades que nunca lhe foram oferecidas, desaparecerão. No fim das contas: “condena-se o criminoso, não a máquina que o fabrica, como se condena o viciado e não o modo de vida que cria a necessidade do consolo químico ou sua ilusão de fuga... A lei é como uma teia de aranha, feita para aprisionar moscas e outros insetos pequeninos e não os bichos grandes, como concluiu Daniel Drew. E já faz um século que José Hernández, o poeta, comparou a lei com uma faca, que jamais fere quem a maneja. Os discursos oficiais, no entanto, invocam a lei como se ela valesse para todos e não só para os infelizes que não podem evitá-la. Os delinqüentes pobres são os vilões do filme: os delinqüentes ricos escrevem o roteiro e dirigem os atores” (GALEANO, 2007, p. 96).

Alanna Sousa
Fontes:
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. São Paulo: Aleph, 2004.
GALEANO, Eduardo. De Pernas Pro Ar. A escola do mundo ao avesso. 9 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.
WACQUANT, Loiic. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
Documentário (como não tenho as informações aqui, coloco no próximo post).

[1] Essa palavra é tão absurda do ponto de vista sociológico, que nem mesmo o próprio dicionário que vem acoplado ao Word a reconhece. Motivo pelo qual vem acompanhada das aspas. Sobre o meu repúdio a esta palavra, ler post do dia 31 de março.

Um comentário:

G. Nascimento disse...

Muito boa a sua comparação do sistema penal ao livro. Que eu particularmente só ví o filme e que gosto muito. PEnco que vc escreveu parte daquilo que acredito sobre o sistema penal. E que me intriga.
Parabéns!