Manchete: Travesti com HIV injeta sangue infectado em enfermeiras de Brasília.
O que mais me chamou a atenção nessa manchete não é a gravidade (dada pela mídia) da situação, mas, a perda da identidade do agressor, por parte de quem a escreveu. A mesma não dá a devida importância ao caso, em si. Não enfatiza o caos em que se transformou a questão da saúde brasileira e a precariedade das instituições públicas que, por falta de contingente e estrutura, deixam mais que a desejar.
Sendo assim, é preferível (leia-se: mais vendável e rentável) tratar a matéria sob outra perspectiva: a da (falta de) identidade do(a) agressor(a). Na própria matéria não se define quem praticou a ação; a manchete fala no masculino enquanto que, no seu desenvolver, os depoimentos das testemunhas se referem à pessoa na sua forma feminina.
Homem ou mulher, o “personagem” dessa “história” parece ser “assexuado” e não ter identidade. Quem quer que tenha escrito essa reportagem, sequer se deu ao trabalho de descobrir o nome da pessoa, bastou denominá-lo de “o travesti”.
É como se quisessem alertar a sociedade: “cuidado: travesti à solta, com seringa infectada pelo vírus do HIV, em punhos.” Passa-se a idéia de que o mesmo só agiu assim, por ser travesti. É como se não tivesse escrúpulos e nem princípios, já que também não tem sexo definido.
Portanto, pouco importa se o mesmo agiu por impulso, por revolta e por desespero (não que justifique a sua atitude, mas, no mínimo, têm-se um “porque”), depois de passar mais de 5 horas no corredor de um hospital, esperando que sua amiga, que estava passando mal, fosse atendida. O que ficou claro era que o fato foi cometido por um TRAVESTI, e, portanto, merece toda e qualquer forma de repúdio pela sociedade.
Como já era de se esperar, o caso só poderia ir parar na delegacia e ser tratado pelas mãos do Estado penal: “De acordo com o delegado Onofre de Moares, o travesti vai responder por tentativa de duplo homicídio. “A partir do momento que ficou constatado no laudo que ele é soropositivo, vai responder por duas tentativas de homicídio qualificado. A pena para cada tentativa é de 12 a 30 anos, diminuída de um ou dois terços porque foi tentativa, e não homicídio consumado”, explicou o delegado.” Só não entendi o nexo de causalidade entre o fato em si, e a punição a qual será submetido o agressor. Dupla tentativa de homicídio qualificado?
Duas perguntas merecem ser feitas ao se ler essa reportagem: 1) está se punindo o fato, em si, ou o AUTOR? 2) se a repressão diz respeito ao fato, por que não julgar, também, o Estado, por não prover o devido e necessário atendimento aos seus pacientes? Uma pessoa que passa 5 horas, agonizando, no corredor de um hospital, não está sendo lesada? Não cabe falar, então, em tentativa de homicídio? E também qualificado (ressaltando o papel de garante do Estado)? Sem contar, é claro, os inúmeros casos de mortes consumadas, por falta de atendimento, ou por infecções causadas pelas péssimas condições sanitárias dos hospitais, ou mesmo pela imperícia, imprudência e negligência de seus funcionários.
Penso que enquanto não soubermos responder tais perguntas, ou mesmo não ousarmos fazê-las, em voz alta, o Estado vai continuar punindo quem quiser e como bem quiser. Resta então torcer para não sermos a sua próxima vítima.
Para ler a reportagem na íntegra: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/06/travesti-com-hiv-injeta-sangue-infectado-em-enfermeiras.html
Alanna Sousa
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